sábado, 3 de abril de 2010

PELA ESTRADA AFORA - COUPE MOHAMMED V 1968

Quando pensamos no futebol carioca da década de 60, rapidamente vem à cabeça o Botafogo. Poderíamos até dizer “os Botafogos”, já que durante esta década o Glorioso contou com dois diferentes esquadrões, o de Nilton Santos, Didi e Garrincha e o de Gérson, Jairzinho e Paulo César Caju. Devido a este grande sucesso do Glorioso, alguns outros grandes times dos anos 60 permanecem escondidos na história, como é o caso do Flamengo de 1968. Desde 1962 ocorria anualmente no Marrocos a Coupe Mohammed V, que recebia este nome em homenagem aquele que foi Sultão do país por mais de vinte anos e também seria rei por mais quatro. Por o Marrocos não ser um país tradicional no planeta bola, e na época era ainda menos, fica a primeira impressão de que o torneio era fraco tecnicamente. Bom, esta é uma conclusão completamente equivocada. Para se ter idéia do alto nível da Coupe Mohammed V, o Boca Juniors de Rattín, um dos principais símbolos do futebol argentino, e o Real Madrid do lendário ponta-esquerda Gento venceram a competição, respectivamente em 1964 e 1966. Para a edição de 1968, pela primeira vez uma equipe brasileira, no caso o Flamengo, fora convidada para a disputa, e, diante de adversários fortíssimos, o futebol canarinho seria perfeitamente representado.

Quando eu disse na linha acima “adversários fortíssimos”, fui muito econômico nas palavras. Cada edição do torneio contava sempre com o atual Campeão Marroquino - em 1968 quem iria fazer as honras da casa era o FAR Rabat. Isto não era nenhuma novidade, pois o FAR Rabat era disparado a maior potencia do futebol do Marrocos na década de 60, como comprova o fato de esta ser a sexta participação da equipe na competição. Se, apesar da hegemonia local, o FAR Rabat não assustava tanto, os outros dois concorrentes ao já tradicional caneco eram das maiores equipes do mundo.

Representando o futebol europeu estava o St. Etienne, que vivia uma época dourada. Campeão Francês em 1964, foi em 1967 que o St. Etienne iniciou um período histórico no futebol do país. Comandados pelo atacante Hervé Revelli, que havia obtido uma média de quase 1 gol por jogo na temporada anterior e que mais tarde alcançaria o posto de maior artilheiro do clube em todos os tempos, os “Le Verts”, como são conhecidos por seu famoso uniforme verde, conquistariam o Tetra-Francês (67/68/69/70). Neste torneio amistoso, Revelli atuaria ao lado do recém-chegado Salif Keita, para muitos o maior jogador da história do futebol de Mali, iniciando a formação de uma dupla inesquecível para os torcedores do clube. Outros jogadores como o consistente e experiente Robert Herbin, muito conhecido por seus cabelos vermelhos e que havia disputado a Copa do Mundo de 1966, e o meia Aimé Jacquet, que em 1998 conquistaria a Copa do Mundo como treinador da Seleção Francesa, também fizeram parte desta verdadeira Seleção Verde.

Apesar de todo o poderio do St. Etienne, o favorito ao título era o Racing, simplesmente o atual Campeão do Mundo. Isso mesmo, a equipe argentina conquistou o Mundial Interclubes em 1967, após bater o escocês Celtic. Como dizem os antigos, o Racing era um timaço do goleiro ao ponta-esquerda. Quem tinha a missão de defender a meta alvi-celeste era o grande arqueiro Cejas, que mesclava grande sobriedade debaixo das traves com vôos e antecipações impressionantes. Em 1973, após sua vitoriosa carreira no Racing, onde se tornou o jogador que mais atuou pelo clube, Cejas conquistaria o Paulistão ao lado de Pelé, no Santos. Semelhante fato ocorreu com o zagueiro Perfumo, um craque de bola que após fazer parte desta histórica equipe do Racing também jogou no futebol brasileiro, quando formou uma intransponível dupla de zaga no Cruzeiro ao lado de Wilson Piazza. Ofensivamente a equipe treinada por Juan José Pizzuti era sensacional. Juan Carlos Cardenas, Jaime Martinolli e Roberto Salomone, que eram jogadores de primeira linha, contavam com a companhia do meia-atacante Humberto Maschio, um gênio do futebol. Maschio jogava tanta bola que uma Seleção só foi pouco para ele. Pela Argentina, foi Campeão e artilheiro da Copa América de 1957, torneio o qual conquistou depois de ter sapecado 3 x 0 no Brasil. Mais tarde, devido ao grande futebol que mostrou em sua passagem pela Itália, foi convocado para disputar a Copa do Mundo de 1962 pela “Squadra Azzurra”.

O Flamengo teria que ter uma bela equipe para fazer frente a adversários de tamanho calibre. E tinha... No quarteto de defesa, se destacavam os laterais. Murilo, pela direita, e Paulo Henrique, pela esquerda, já possuíam o manto rubro-negro como segunda pele. Juntos, eles já haviam conquistado dois Cariocas pelo Flamengo, o de 1963, que o Fla-Flu decisivo foi o jogo entre clubes de maior público na história do país, com 177.020 pagantes, e o de 1965. Um fato que comprova a qualidade destes defensores foi que na convocação inicial da Seleção Brasileira que disputou a Copa do Mundo de 1966, ambos estiveram presentes. Murilo acabou perdendo a vaga para Djalma Santos e Fidélis, dois dos maiores laterais que nosso futebol já viu, e Paulo Henrique fez parte do elenco que foi à Inglaterra tentar o Tri.

À frente da defesa, que além dos já citados laterais era formada por Guilherme e Onça, estava uma dupla que ficou conhecida como "Carregador de Piano" e "Violino". Por estes apelidos, já podemos imaginar as características de cada componente desta dupla. O “Carregador de Piano” era Liminha, jogador incansável e que não parava em campo por sequer um minuto. Nesta época, o raçudo Liminha ainda começava a se estabilizar na equipe do Flamengo, por onde atuaria até meados da década de 70, e já tinha a honra de atuar ao lado de um dos maiores jogadores da história do clube: Carlinhos “Violino”. Meia clássico, elegante e com toque de bola muito refinado, era Carlinhos quem tinha a missão de arquitetar as jogadas ofensivas da equipe, o que, diga-se de passagem, ele cumpria com maestria. Quando encerrou sua carreira, ele entregou suas chuteiras para um garoto de 17 anos que ainda iniciava a vida no Flamengo. O nome do garoto? Arthur Antunes Coimbra. Mesmo após largar as quatro-linhas, o “Violino” continuou escrevendo páginas na história do Flamengo, tendo conquistado, como treinador, os Brasileiros de 1987 e 1992.

No comando do ataque rubro-negro estava Silva, um cracaço de bola. Atacante completo, que sabia organizar jogadas para seus companheiros e também finalizar com extrema precisão, Silva era um dos melhores jogadores de sua época, tendo feito dupla com Pelé na Copa do Mundo de 1966. Uma de suas principais características era ser um grande cabeceador, o que tornava a vida dos zagueiros ainda mais complicada. Bola por baixo? Gol de Silva. Bola pelo alto? Gol de Silva. Era chamado de “Batuta”, mas a origem do apelido nunca foi determinada. Uns diziam que era por sua capacidade de liderar tecnicamente uma equipe, parecendo um maestro com sua batuta na mão, outros que era por ele ser um cara legal, gente fina, batuta. Mais tarde, Silva se tornaria um grande ídolo no mesmo Racing que em 68 era adversário na Coupe Mohammed V, e do rival Vasco, onde foi responsável direto por encerrar uma fila de 12 anos sem títulos do Cruz-maltino, com a conquista do Carioca de 1970. Fazendo companhia a Silva no ataque rubro-negro estavam o bom atacante Luís Cláudio, o folclórico Fio Maravilha e Rodrigues Neto, que mais tarde se tornaria um dos excelentes laterais-esquerdo do país, conquistando títulos com o Fla, fazendo parte da “Máquina Tricolor” de Rivelino e Paulo César Caju, e disputando a Copa do Mundo de 1978.

O torneio seria disputado no estilo clássico dos torneios amistosos. Duas semi-finais e depois decisão de 3º lugar e final. Simples, rápido e absurdamente divertido. Como gostaria que os clubes brasileiros ainda disputassem torneios deste tipo... O Flamengo iniciaria sua participação enfrentando o time da casa, o FAR Rabat, enquanto Racing e St. Etienne fariam um duelo do maior nível possível. Diante de um empolgado adversário, como se mostrava o mandante time do FAR Rabat, o Flamengo precisou suar a camisa para vencer por 2 x 1. Luís Cláudio foi o autor dos dois gols rubro-negros, sendo o segundo deles, o da vitória, aos 41 minutos da 2ª etapa. Vale registrar aqui um fato curioso. O atacante Luís Cláudio poderia até ter saído da partida com um hat-trick, ou seja, três gols marcados, mas uma decisão estranhíssima do árbitro anulou um gol seu. Depois de uma bola ter saído pela lateral, o banco de reservas do Flamengo recolocou em jogo uma bola de fabricação brasileira. Quando Luís Cláudio sacudiu o filó, o juiz percebeu a origem da pelota e cancelou o gol.

Antes mesmo de Racing e St. Etienne entrarem em campo, já era esperado um jogo equilibrado. Novamente vou mostrar minha tristeza com a ausência deste tipo de competições nos dias de hoje, pois por falta delas, deixamos de assistir duelos de futebol únicos e inesquecíveis. Ou alguém tem dúvidas de que o confronto entre o Racing e St. Etienne, em pleno ano de 1968, período mágico para ambos os clubes, foi inesquecível? Apesar de toda a força ofensiva dos franceses, o Racing conseguiu segurar o jogo e marcou o tento da vitória com Solomones, aos 20 minutos da 2ª etapa.

Na disputa pelo 3º lugar, a espetacular dupla ofensiva dos “Les Verts” Keita/Revelli foi responsável pela vitória do St. Etienne sobre o FAR Rabat, com cada um tendo marcado um tento e fechando o placar em 2 x 0.

Para o confronto decisivo, o Estádio Honneur Marcel Cerdan, de Casablanca, estava lotado, afinal não era sempre que marroquinos teriam o prazer de assistir um duelo entre Brasil x Argentina. Se o Flamengo já esperava um jogo duro, a situação ficou ainda mais complicada quando Cardenas abriu o placar para os Alvi-Celestes logo aos 5 minutos de jogo. Com a vantagem, o Racing pôde atuar com mais tranquilidade e o Flamengo foi buscar um gol ainda na 1ª etapa, para não necessitar voltar do intervalo se expondo demais. Foi então que entrou em ação Silva, o genial atacante do Mengão, e, aos 44 minutos, quando tudo que o Racing queria estava ocorrendo, acertou um belo chute e igualou o marcador. Com o empate, o Flamengo teve um intervalo bem mais calmo e conseguiu voltar para a 2º tempo com tranquilidade para mostrar todo seu futebol. Na metade da etapa, quando o equilíbrio era a tônica do jogo, o Mengão conseguiu marcar dois gol e garantir o triunfo. Primeiro, o “motorzinho” Liminha chegou ao ataque e virou a partida. Cinco minutinhos depois, aos 30, Silva – sempre ele – utilizou seu famoso cabeceio para colocar 3 x 1 no placar. O Racing ainda diminuiu com Solomones, mas já era tarde demais para impedir a derrota do Campeão Mundial e que o capitão rubro-negro, Paulo Henrique, tivesse a honra de receber o troféu das mãos do Rei Hassan II.

Com a conquista da Coupe Mohammed V, o Flamengo mostrou que, apesar da precoce eliminação da Seleção Canarinho na Copa do Mundo de 1966, o futebol brasileiro não estava em decadência, muito pelo contrário. A prova final viria dois anos mais tarde, na Copa do Mundo do México, quando o Brasil conquistou o Tri de maneira avassaladora.

Equipe-base: Marco Aurélio; Murilo, Onça, Guilherme e Paulo Henrique; Liminha e Carlinhos; Néviton, Fio, Silva e Rodrigues Neto.

Também atuaram: Claudinei, Cardosinho, Luís Cláudio e Diogo

Nenhum comentário:

Postar um comentário