Numa consagrada crônica, Nelson Rodrigues fala da
"grã-fina de narinas de cadáver" que, em pleno estádio, pergunta para
o seu milionário acompanhante do momento, um desses eternos Waltinhos,
Diduzinhos, Jorginhos ou Olavinhos que reinam nas nossas colunas sociais:
"Quem é a bola?"
— Quem é a bola?
Hoje, em pleno calor do certame mundial e com os olhos, a
cabeça e o coração sintonizados na campanha do escrete brasileiro, a pergunta
aparece ainda mais insólita e surrealista.
E no entanto eu digo que a grã-fina estava absolutamente
correta, pois fazia, sabendo ou não, a grande pergunta. Ouso afirmar, portanto,
que, tanto no futebol quanto na vida, "quem é a bola" é a grande, a
única, a insofismável questão. De fato, falar do jogador, do juiz, dos
estádios, dos contratos, das táticas, dos cartolas e do salário dos técnicos,
como fazem todos, é uma maneira ingênua e infantil de fugir do verdadeiro
assunto: o insondável e inefável caráter da bola. Porque, tirando a bola, todos
esses personagens que ela coloca a reboque e a perseguem são seres racionais,
logo quadrados e sordidamente previsíveis. Só a bola, em sua plena, inocente e
esférica irracionalidade, conforme viu a grã-fina, desperta dúvidas.
Pois o que conta no futebol não é bem a treinada vontade
humana, mas a sensual e caprichosa bola. Bola que simboliza a gratuidade da
vida e, de quebra, representa a sorte e o azar. Bola que, como uma Capitu
moderna, vai para onde não queremos e, tendo movimentos indecifráveis, quase
sempre cai nos pés dos nossos inimigos. Bola que, como uma Carmem, nos deixa
loucos de ciúmes porque, depois de seduzir um primeiro, acompanha
desavergonhadamente um segundo e, em seguida, flui natural e dengosamente para
os sujos pés de um terceiro. Bola que, como esse final de milênio, é imprevisivelmente
redonda e balofa, prenhe de rodopios, efeitos e movimentos imprevisíveis. Bola,
afinal, que se transforma em coração e bate (surda, muda e absurda) dentro dos
nossos peitos sobejamente abandeirados.
Essa bola que tentamos domesticar, segurar e
"comer". Sem ela, poderia haver jogo, mas não haveria grandeza e
ritual. Pois a bola representa insegurança, descontrole e, é claro, o sal da
vida. Essa vida que nós temos que disputar com garra e altivez como se cada dia
fosse uma final de Copa do Mundo. Bola que jamais será totalmente nossa.
Bola que corre mais que os homens...
Roberto DaMatta
Crônica de Roberto DaMatta publicada no Jornal da Tarde, às
vésperas da Copa do Mundo de 1994, e retirada do livro A bola corre mais que os
homens, da editora Rocco.
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