segunda-feira, 29 de julho de 2013

GÊNIOS DAS PALAVRAS - ROBERTO DAMATTA

Numa consagrada crônica, Nelson Rodrigues fala da "grã-fina de narinas de cadáver" que, em pleno estádio, pergunta para o seu milionário acompanhante do momento, um desses eternos Waltinhos, Diduzinhos, Jorginhos ou Olavinhos que reinam nas nossas colunas sociais: "Quem é a bola?"

— Quem é a bola?
Hoje, em pleno calor do certame mundial e com os olhos, a cabeça e o coração sintonizados na campanha do escrete brasileiro, a pergunta aparece ainda mais insólita e surrealista.

E no entanto eu digo que a grã-fina estava absolutamente correta, pois fazia, sabendo ou não, a grande pergunta. Ouso afirmar, portanto, que, tanto no futebol quanto na vida, "quem é a bola" é a grande, a única, a insofismável questão. De fato, falar do jogador, do juiz, dos estádios, dos contratos, das táticas, dos cartolas e do salário dos técnicos, como fazem todos, é uma maneira ingênua e infantil de fugir do verdadeiro assunto: o insondável e inefável caráter da bola. Porque, tirando a bola, todos esses personagens que ela coloca a reboque e a perseguem são seres racionais, logo quadrados e sordidamente previsíveis. Só a bola, em sua plena, inocente e esférica irracionalidade, conforme viu a grã-fina, desperta dúvidas.

Pois o que conta no futebol não é bem a treinada vontade humana, mas a sensual e caprichosa bola. Bola que simboliza a gratuidade da vida e, de quebra, representa a sorte e o azar. Bola que, como uma Capitu moderna, vai para onde não queremos e, tendo movimentos indecifráveis, quase sempre cai nos pés dos nossos inimigos. Bola que, como uma Carmem, nos deixa loucos de ciúmes porque, depois de seduzir um primeiro, acompanha desavergonhadamente um segundo e, em seguida, flui natural e dengosamente para os sujos pés de um terceiro. Bola que, como esse final de milênio, é imprevisivelmente redonda e balofa, prenhe de rodopios, efeitos e movimentos imprevisíveis. Bola, afinal, que se transforma em coração e bate (surda, muda e absurda) dentro dos nossos peitos sobejamente abandeirados.

Essa bola que tentamos domesticar, segurar e "comer". Sem ela, poderia haver jogo, mas não haveria grandeza e ritual. Pois a bola representa insegurança, descontrole e, é claro, o sal da vida. Essa vida que nós temos que disputar com garra e altivez como se cada dia fosse uma final de Copa do Mundo. Bola que jamais será totalmente nossa.

Bola que corre mais que os homens...

Roberto DaMatta


Crônica de Roberto DaMatta publicada no Jornal da Tarde, às vésperas da Copa do Mundo de 1994, e retirada do livro A bola corre mais que os homens, da editora Rocco.

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