O GOL FATAL
Artigo
do cineasta e escritor italiano Pier Paolo Pasolini publicado no “Il Giorno”, no
dia 3 de janeiro de 1971
Em meio ao debate atual sobre os problemas lingüísticos
que separam artificialmente literatos de jornalistas e jornalistas de
jogadores, fui indagado por um gentil repórter do "Europeo"; mas as
minhas respostas saíram cortadas e depauperadas no tablóide (por causa das
exigências jornalísticas!). Porém, como o assunto me interessa, gostaria de
voltar a ele com mais calma e com a plena responsabilidade sobre aquilo que
digo.
O que é uma língua? "Um sistema de signos",
responde do modo hoje mais exato um semiólogo. Mas esse "sistema de
signos" não é apenas, necessariamente, uma língua escrita-falada (esta que
usamos agora, eu escrevendo e você, leitor, lendo).
Os "sistemas de signos" podem ser muitos.
Tomemos um caso: eu e você, leitor, estamos numa sala onde também estão
presentes [o jornalista e ex-porta-voz do presidente italiano Alessandro
Pertini, Antonio] Ghirelli e [o jornalista esportivo da Itália Gianni] Brera, e
você quer me dizer algo sobre Ghirelli que Brera não deve ouvir. A situação
impede que você me fale por meio do sistema de signos verbais, e então é
preciso recorrer a um outro sistema de signos, por exemplo, o da mímica; aí
você começa a revirar os olhos, a entortar a boca, a agitar as mãos, a ensaiar
gestos com os pés etc.
Você é o "cifrador" de um discurso
"mímico" que eu decifro: isso significa que possuímos em comum um
código "italiano" de um sistema de signos mímico.
Pintura, cinema e futebol
Outro sistema de signos não-verbal é o da pintura; ou o do
cinema; ou o da moda (objeto de estudo de um mestre nesse campo, Roland
Barthes) etc. O jogo de futebol também é um "sistema de signos", ou
seja, é uma língua, ainda que não-verbal. Por que digo isso (que em seguida
pretendo desenvolver esquematicamente)? Porque a "querelle" que contrapõe
a linguagem dos literatos à dos jornalistas é falsa. E o problema é outro.
Vejamos. Toda língua (sistema de signos escritos-falados)
possui um código geral. Tomemos o italiano: usando esse sistema de signos, eu e
você, leitor, nos entendemos porque o italiano é um patrimônio nosso, comum,
"uma moeda de troca". Entretanto cada língua é articulada em várias
sublínguas, e cada uma destas possui, por sua vez, um subcódigo: os italianos
médicos se compreendem entre si -quando falam o jargão especializado- porque
todos eles conhecem o subcódigo da língua médica; os italianos teólogos se
compreendem entre si porque detêm o subcódigo do jargão teológico etc. etc.
A língua literária é também uma língua de jargão, com um
subcódigo próprio (em poesia, por exemplo, em vez de dizer "speranza"
é possível dizer "speme", mas nós não estranhamos essa coisa
engraçada porque se sabe que o subcódigo da língua literária italiana demanda e
admite que, em poesia, sejam usados latinismos, arcaísmos, palavras truncadas etc.
etc.).
O jornalismo não é senão um ramo menor da língua
literária: para compreendê-lo, valemo-nos de uma espécie de sub-subcódigo. Em
palavras pobres, os jornalistas são simplesmente escritores que, a fim de
vulgarizar e simplificar conceitos e representações, se valem de um código
literário, digamos -para ficarmos no campo esportivo-, de segunda divisão.
Assim a linguagem de Brera é de segunda divisão se comparada à linguagem de
Carlo Emilio Gadda [escritor italiano, 1893-1973] e de Gianfranco Contini
[crítico literário].
E a língua de Brera é, talvez, o caso mais bem qualificado
do jornalismo esportivo italiano. Portanto não existe conflito "real"
entre escritura literária e jornalística: o problema é que esta, coadjuvante
como sempre foi, agora exaltada por seu uso na cultura de massa (que não é
popular!), encampa pretensões um tanto soberbas, de "parvenu". Mas
vamos ao futebol.
O futebol é um sistema de signos, ou seja, uma linguagem. Ele tem todas as
características fundamentais da linguagem por excelência, aquela que
imediatamente tomamos como termo de comparação, isto é, a linguagem
escrita-falada.
"Podemas"
De fato as "palavras" da linguagem do futebol
são formadas exatamente como as palavras da linguagem escrita-falada. Ora, como
se formam estas últimas? Formam-se por meio da chamada "dupla
articulação", isto é, por infinitas combinações dos "fonemas"
-que, em italiano, são as 21 letras do alfabeto.
Os "fonemas" são, pois, as "unidades
mínimas" da língua escrita-falada. Se quisermos nos divertir definindo a
unidade mínima da língua do futebol, podemos dizer: "Um homem que usa os
pés para chutar uma bola". Aí está a unidade mínima, o "podema"
(se quisermos continuar a brincadeira). As infinitas possibilidades de combinação
dos "podemas" formam as "palavras futebolísticas"; e o
conjunto das "palavras futebolísticas" constitui um discurso,
regulado por normas sintáticas precisas.
Os "podemas" são 22 (mais ou menos como os
fonemas): as "palavras futebolísticas" são potencialmente infinitas,
porque infinitas são as possibilidades de combinação dos "podemas" (o
que, em termos práticos, equivale às passagens da bola entre os jogadores); a
sintaxe se exprime na "partida", que é um verdadeiro discurso
dramático.
Os cifradores desta linguagem são os jogadores; nós, nas
arquibancadas, somos os decifradores: em comum, possuímos um código.
Quem não conhece o código do futebol não entende o
"significado" das suas palavras (os passes) nem o sentido do seu
discurso (um conjunto de passes).
Não sou nem Roland Barthes [1915-1980] nem Greimas
[lingüista, 1917-92], mas, como diletante, se quisesse, poderia escrever um
ensaio sobre a "língua do futebol" bem mais convincente do que este
artigo. Aliás, penso que se poderia escrever um belo ensaio intitulado
"Propp Aplicado ao Ludopédio", já que, naturalmente, como qualquer
língua, o futebol tem o seu momento puramente "instrumental", rígida
e abstratamente regulado pelo código, e o seu momento "expressivo".
Pouco antes, disse que toda língua se articula em várias
sublínguas, cada qual com um subcódigo.
Pois bem, com a língua do futebol também é possível fazer
distinções desse tipo: o futebol também possui subcódigos, na medida em que, de
puramente instrumental, se torna expressivo.
Há futebol cuja linguagem é fundamentalmente prosaica e
outros cuja linguagem é poética. Para explicar melhor a minha tese, darei
-antecipando as conclusões- alguns exemplos: [o meio-de-campo italiano]
Bulgarelli joga um futebol de prosa, é um "prosador realista"; Riva
[maior goleador da história da seleção italiana] joga um futebol de poesia, é
um "poeta realista".
Corso joga um futebol de poesia, mas não é um "poeta
realista": é um poeta meio "maudit", extravagante.
Prosa e poesia
Rivera [meio-campista italiano que disputou a final da
Copa de 1970, contra o Brasil] joga um futebol de prosa: mas sua prosa é
poética, de "elzevir".
Também Mazzola [João José Altafini. Jogou pelo Palmeiras e
pela seleção brasileira, sendo campeão em 1958. Depois se transferiu para a
Itália e se naturalizou italiano, chegando a jogar pela seleção na final da
copa de 70 contra o Brasil] é um prosador elegante e poderia até escrever no
"Corriere della Sera", mas é mais poeta que Rivera: de vez em quando
ele interrompe a prosa e inventa, de repente, dois versos fulgurantes.
Note-se que não faço distinção de valor entre a prosa e a
poesia; minha distinção é puramente técnica.
Entretanto nos entendamos. A literatura italiana,
sobretudo a mais recente, é a literatura dos "elzevires": os
escritores são elegantes e, no limite, estetizantes; a substância é quase
sempre conservadora e meio provinciana... Em suma, democrata-cristã. Todas as
linguagens faladas em um país, mesmo as mais especializadas e espinhosas, têm
um terreno comum, que é a cultura desse país: a sua atualidade histórica.
Assim, justamente por razões de cultura e de história, o
futebol de alguns povos é fundamentalmente de prosa, seja ela realista ou
estetizante (este último é o caso da Itália); ao passo que o futebol de outros
povos é fundamentalmente de poesia.
Há no futebol momentos que são exclusivamente poéticos:
trata-se dos momentos de gol. Cada gol é sempre uma invenção, uma subversão do
código: cada gol é fatalidade, fulguração, espanto, irreversibilidade.
Precisamente como a palavra poética. O artilheiro de um campeonato é sempre o
melhor poeta do ano. Neste momento, [Giuseppe] Savoldi [jogador do Bolonha, do
Nápoli e da seleção italiana] é o melhor poeta. O futebol que exprime mais gols
é o mais poético.
O drible é também essencialmente poético (embora nem
sempre, como a ação do gol). De fato, o sonho de todo jogador (compartilhado
por cada espectador) é partir da metade do campo, driblar os adversários e
marcar. Se, dentro dos limites permitidos, é possível imaginar algo sublime no
futebol, trata-se disso. Mas nunca acontece. É um sonho (que só vi realizado
por Franco Franchi [1922-92, um dos principais nomes do cinema cômico italiano]
nos "Mágicos da Bola", o qual, apesar do nível tosco, conseguiu ser
perfeitamente onírico).
Quem são os melhores dribladores do mundo e os melhores
fazedores de gols? Os brasileiros. Portanto o futebol deles é um futebol de
poesia -e, de fato, está todo centrado no drible e no gol.
A retranca e a triangulação é futebol de prosa: baseia-se na sintaxe, isto é,
no jogo coletivo e organizado, na execução racional do código. O seu único
momento poético é o contrapé seguido do gol (que, como vimos, é necessariamente
poético). Em suma, o momento poético do futebol parece ser (como sempre) o
momento individualista (drible e gol; ou passe inspirado).
O futebol de prosa é o do chamado sistema (o futebol
europeu). Nesse esquema, o gol é confiado à conclusão, possivelmente por um
"poeta realista" como Riva, mas deve derivar de uma organização de
jogo coletivo, fundado por uma série de passagens "geométricas",
executadas segundo as regras do código (nisso Rivera é perfeito, apesar de
Brera não gostar, porque se trata de uma perfeição meio estetizante,
não-realista, como a dos meio-campistas ingleses ou alemães).
O futebol de poesia é o latino-americano. Esquema que,
para ser realizado, demanda uma capacidade monstruosa de driblar (coisa que na
Europa é esnobada em nome da "prosa coletiva"): nele, o gol pode ser
inventado por qualquer um e de qualquer posição. Se o drible e o gol são o
momento individualista-poético do futebol, o futebol brasileiro é, portanto, um
futebol de poesia. Sem fazer distinção de valor, mas em sentido puramente
técnico, no México [em 1970] a prosa estetizante italiana foi batida pela
poesia brasileira.
Tradução
de Maurício Santana Dias
Retirado
de http://www1.folha.uol.com.br