Garrincha e a origem do olé
Por João Saldanha
Retirado do livro
Subterrâneos do Futebol, da editora Tempo
O Estádio
Universitário ficou à cunha. Cem mil pessoas comprimidas para assistir ao jogo.
É muito alegre um jogo no México. É o país em que a torcida mais se parece com
a do Rio de Janeiro. Barulhenta, participa de todos os lances da partida.
Vários grupos de "mariaches" comparecem.
Estes grupos, que
formam o que há de mais típico da música mexicana, são constituídos de um ou
dois "pistões" e clarins, dois ou três violões, harpa (parecida com a
das guaranias), violinos e marimbas. As marimbas são completamente de madeira,
mas não vão ao campo de futebol, sendo substituídas por instrumentos pequenos.
O ponto alto dos
"mariaches" é a turma do pistão, do clarim e o coro, naturalmente. No
campo de futebol, os grupos amadores de "mariaches" que comparecem
ficam mais ativos em dois momentos distintos: ou quando o jogo está muito bom e
eles se entusiasmam, ou, inversamente, quando o jogo está chato e eles
"atacam" músicas em tom gozador. No jogo em que vencemos ao Toluca,
que estava no segundo caso, os "mariaches" salvaram o espetáculo.
O time do River era,
realmente, uma máquina. Futebol bonito e um entendimento que só um time que
joga junto há três anos pode ter. Modestamente, jogamos trancados. A prudência
mandava que isto fosse feito. De fato, se "abríssemos", tomaríamos um
baile.
Foi um jogo de rara
beleza. E não foi por acaso. De um lado estavam Rossi, Labruña, Vairo,
Menéndez, Zarate, Carrizo. De outro, estavam Didi, Nilton Santos, Garrincha
etc. Jogo duro e jogo limpo. Não se tratava de camaradagem adquirida em quase
um mês no mesmo hotel, mas sim da presença de grandes craques no gramado. A
torcida exultava e os "mariaches" atacavam entusiasmados.
Estava muito difícil
fazer gol. Poucas vezes vi um jogo disputado com tanta seriedade e respeito
mútuos. Mas houve um espetáculo à parte. Mané Garrincha foi o comandante.
Dirigiu os cem mil espectadores. Fazendo reagirem à medida de suas jogadas. Foi
ali, naquele dia, que surgiu a gíria do "Olé", tão comumente
utilizada posteriormente em nossos campos. Não porque o Botafogo tivesse dado
"Olé" no River. Não. Foi um "Olé" pessoal. De Garrincha em
Vairo.
Nunca assisti a coisa
igual. Só a torcida mexicana com seu traquejo de touradas poderia, de forma tão
sincronizada e perfeita, dar um "Olé" daquele tamanho. Toda vez que
Mané parava na frente de Vairo, os espectadores mantinham-se no mais profundo
silêncio. Quando Mané dava aquele seu famoso drible e deixava Vairo no chão, um
coro de cem mil pessoas exclamava: "Ôôôôô"! O som do "olé"
mexicano é diferente do nosso. O deles é o típico das touradas. Começa com um ô
prolongado, em tom bem grave, parecendo um vento forte, em crescendo, e termina
com a sílaba "lé" dita de forma rápida. Aqui é ao contrário:
acentua-se mais o final "lé": "Olééé!" – sem separar, com
nitidez, as sílabas em tom aberto.
Verdadeira festa. Num
dos momentos em que Vairo estava parado em frente a Garrincha, um dos clarins
dos "mariaches" atacou aquele trecho da Carmem que é tocado na
abertura das touradas. Quase veio abaixo o Estádio Universitário.
Numa jogada de
Garrincha, Quarentinha completou com o gol vazio e fez nosso gol. O River
reagiu e também fez o dele. Didi ainda fez outro, de fora da área, numa jogada
que viera de um córner, mas o juiz anulou porque Paulo Valentim estava junto à
baliza. Embora a bola tivesse entrado do outro lado, o árbitro considerou a
posição de Paulinho ilegal. De fato, Paulinho estava "off-side".
Havia um bolo de jogadores na área, mas o árbitro estava bem ali. E Paulinho
poderia estar distraindo a atenção de Carrizo.
O jogo terminou
empatado. Vairo não foi até o fim. Minella tirou-o do campo, bem perto de nós
no banco vizinho. Vairo saiu rindo e exclamando: "No hay nada que hacer.
Imposible" – e dirigindo-se ao suplente que entrava, gozou:
– Buena suerte
muchacho. Pero antes, te aconsejo que escribas algo a tu mamá.
O jogo terminou
empatado e uma multidão invadiu o campo. O "Jarrito de Oro", que só
seria entregue ao "melhor do campo" no dia seguinte, depois de uma
votação no café Tupinambá, foi entregue ali mesmo a Garrincha. Os torcedores
agarraram-no e deram uma volta olímpica carregando Mané nos ombros. Sob
ensurdecedora ovação da torcida. No dia seguinte, os jornais acharam que
tínhamos vencido o jogo, considerando o tal gol como válido. Mas só dedicaram a
isto poucas linhas. O resto das reportagens e crônicas foi sobre Garrincha.
As agências
telegráficas enviaram longas mensagens sobre o acontecimento e deram grande
destaque ao "Olé". As notícias repercutiram bastante no Rio e a
torcida carioca consagrou o "Olé". Foi assim que surgiu este tipo de
gozação popular, tão discutido, mas que representa um sentimento da multidão.
Já tentaram acabar com
o "Olé". Os árbitros de futebol, com sua inequívoca vocação para
levar vaias, discutiram o assunto em congresso e resolveram adotar sanções. Mas
como aplicá-las? Expulsando a torcida do estádio? Verificando o ridículo a que
estavam expostos, deixam cada dia mais o assunto de lado. É melhor assim. É
mais fácil derrubar um governo do que acabar com o "Olé".
Não poderia ter havido
maior justiça a um jogador que a que foi feita pelos mexicanos a Mané
Garrincha. Garrincha é o próprio "Olé".
Dentro e fora de
campo, jamais vi alguém tão desconcertante, tão driblador. É impossível
adivinhar-se o lado por onde Mané vai "sair" da enrascada. Foi a
coisa mais justa do mundo que Garrincha tivesse sido o inspirador do
"Olé".