Ao Coelho, com misericórdia
Pela internet, alguém que se assina Coelho me pergunta quanto me paga, por mês, o Romário, pelos elogios que vivo fazendo a seu futebol. A interpelação, de dedo em riste, é de tal virulência que cheguei a pensar em não dar a mínima bola pro Coelho. Vai ver, o Coelho é um desses energúmenos que soltam demônios pelos poros.
Resolvi, porém, pegar o bicho pela palavra. Abrirei o jogo. Romário me paga, sim, e daí, Coelho? Temos um acordo tácito pelo qual ele entra com seus belos gols e eu com os meus adjetivos. É toma-lá-dá-cá. Nada de vil metal. Nem real, nem dólar. É na base do escambo.
Mal sabe o Coelho que vivo desse expediente, não é de hoje. Durante anos, minha mocidade tinha o alento dos pés poéticos de Garrincha. Dribles febris, indomáveis. Didi era outro que me recompensava, cada jogo, com passes oblíquos, que principiavam na aurora do campo e iam terminar, ao fim da tarde, nos pés fatais de um artilheiro.
Pelé também me subronava, bonitinho: saltava, amansava a bola no peito, o gesto virava estátua e eu, rápido, levava pra casa. Está, até hoje, pendurada na parede da minha sala. Tenho uma respeitável coleção de jogadas de Pelé na galeria do meu faz-de-conta. Guardo-as saudosamente. Tal como guardo jóias tantas de tanto valor: são cintilações de Zizinho, invenções de Maradona, acelerações de Zico, iluminações de Tostão, de Cruyff, de Nilton Santos. Um verdadeiro tesouro, sem o qual talvez eu nem tivesse sobrevivido à aridez da vida que, certamente, tanto azeda a alma do Coelho. Por ti, misericórdia, Coelho!
Os Coelhos deste mundo entenderão minha atitude como falta de ética. Certamente, quererão me enquadrar no vacilo chamado conflito de interesses. Afinal, sou cronista esportivo e não poderia ficar recebendo benesses de ninguém do futebol. Pro Coelho, sou tão corrupto quanto os membros do COI que receberam presentes pra destinar a Salt Lake City, de mão forrada, os próximos Jogos Olímpicos de Inverno.
O Coelho vai me excomungar, mais ainda, quando souber que as palavras com que participo de tão rico intercâmbio jamais me pertenceram.
Vivo a pescá-las, sempre, nas águas mais cristalinas da poesia. No momento, tenho dedicado minhas melhores insônias a Manuel Bandeira, cujos versos, tal qual os gols de Romário, enchem de estrelas, de aromas e de cânticos o meu cofrinho de emoções.
Se, um dia, me faltar um gol, um drible, um passe e um verso, saiba você, Coelho, que vou passar a viver de brisa, que me parece o jeito mais singelo de aguardar a hora de partir.
27/01/1999
Retirado do livro “A Ginga e o Jogo”, editora Objetiva