sábado, 22 de janeiro de 2011

GÊNIOS DAS PALAVRAS - PAULO MENDES CAMPOS

Salvo pelo Flamengo

Desde garotinho que não sou Flamengo, mas tenho pelo clube da Gávea uma dívida séria, que torno pública neste escrito. Em 1956, passei uma semana em Estocolmo, hospedado em um hotel chamado Aston. Era primavera, pelo menos teoricamente, havia um congresso internacional na cidade, os hotéis estavam lotados, criando contratempos para turistas do interior ou estrangeiros. A recepção do Aston, por exemplo, vivia sempre cheia de gente implorando por um quarto ou discutindo a respeito de uma reserva feita por um telegrama ou telefone.

Estava há dois ou três dias na cidade, quando me pediram para receber um brasileiro e encaminhá-lo ao hotel, onde lhe fora reservado de fato um apartamento. Era uma hora da madrugada quando entramos no hotel e me encaminhei até o empregado do balcão, dando-lhe o nome do meu amigo e lembrando-lhe da reserva. O funcionário, homem de uns sessenta anos e de uma honesta cara escandinava, tomou uma atitude estranha e difusa, que a princípio me surpreendeu e ia acabando por me indignar: ele não confirmava a existência da reserva, nem deixava de confirmar. Como começasse a protestar, vi que seu rosto tomava uma expressão aflita; eu entendendo cada vez menos. Quando passei a exigir o apartamento com alguma energia, o homem, trêmulo, nervoso, pediu-me desculpas e trouxe afinal a ficha de identificação. Foi aí que vi levantar-se da penumbra um homem forte, muito forte mesmo.

Se o leitor conhece um homem forte, muito forte mesmo, imagine uma pessoa mais forte, e terá idéia desse gigante que veio andando até nós, botando ódio pelos olhos e espetacularmente bêbado. O monstro passou por mim com desprezo e, agarrando o empregado pelo gola do uniforme, entrou a sacudi-lo e insultá-lo em sueco. Às vezes, éramos arrolados nessa invectiva, pois o gigante nos apontava enquanto dizia coisas. O empregado, demonstrando possuir um bom instinto de conservação, deixava-se sacolejar à vontade. Rosnando, o ciclope foi sentar-se de novo na saleta, onde só então dei a presença de outro sujeito, também bêbado, mas sinistramente silencioso.

É hoje, pensei. Sair do meu Brasilzinho tão bom, fazer uma viagem imensa, para ser trucidado sem explicação por um bêbado. O fato de ser na Suécia, onde arbitrários atos de violência não são comuns, ainda tornava mais absurdo, um absurdo existencialista, o meu triste fim.

Indaguei do empregado o que se passava. Ficou mudo. Insisti na pergunta, e ele, sussurrando desamparadamente, explicou-me que o gigante estava a pensar: primeiro, que não conseguira a vaga no hotel por ser sueco e estar embriagado; segundo, que nós conseguíramos por ser americanos, norte-americanos. Ora, se meu amigo de fato era meio ruivo, seu jeitão era mineiro; quanto a mim, se fosse americano, só poderia ser filho de portugueses. Por outro lado, o meu inglês amarrado não deixava a menor dúvida sobre a questão de ser ou não ser americano. Só mesmo um sueco bêbado em uma madrugada de neve e vento iria supor que fôssemos americanos. Mas agora era o próprio gigante que bradava para nós com sarcasmo e ira:

- American! American!

Fiquei um pouco mais esperançoso, acreditando que ele falasse inglês, e disse-lhe, exagerando minha alegria e meu orgulho por isso, que não éramos americanos coisa nenhuma, éramos brasileiros.

Não entendeu ou talvez pensou que estivéssemos covardemente a renegar nossa pátria, voltando a vociferar, em um esforço linguístico que contraía todos os músculos do seu rosto.

- American! Dollar! No like!

As palavras em si significavam pouco, mas a maneira de exprimi-las era de uma eloquência que teria destruído Catilina muito mais depressa que os disursos de Cícero. Durante alguns minutos mantivemos os dois um polêmica oratória nestes termos:

- American!
- No, Brazilian!
- American!
- Brazilian!

Essa versátil discussão ia levar-me ao abismo, quando de súbito me pareceu que a palavra “Brazilian” havia penetrado por fim em sua testa granítica. Descontraindo os músculos, o gigante me perguntou:

- Brazil?! No American? Brazil?

Não tinha certeza se ele estava me gozando, mas sua expressão era tão estranhamente deslumbrada e infantil que afirmei de entusiasmo:

- Yes, Brazil!

Ele se levantou, cambaleou, aproximou-se, apontou meu amigo:

- Brazil?
- Brazil, Brazil.

Veio chegando, sorrindo, em pleno estado de graça, e gritando com alma, como se saudasse o nascimento de um mundo novo:

- Flamengo! Flamengo!

Imediatamente, o gigante entrou em transe e começou a fazer problemáticas firulas com uma bola imaginária, mas dando a entender cabalmente o quanto ele admirava (admirava é pouco: o quanto ele amava) o malabarismo de nossos jogadores. O gigante se desencantara, virando menino. A certa altura, depois de fazer um passe de letra, parou e confessou-me com um orgulho caloroso:

- I Flamengo! I Rubens!

Ele não era sueco, não era gigante, não era bêbado, não era um ex-campeão de hóquei (conforme soube depois), era Flamengo, era Rubens. Depois cutucou-me o peito, tomado de perigosa dúvida:

- You! Flamengo?

Que o Botafogo me perdoe, mas era um caso de vida ou de morte, e também gritei descaradamente:

- Flamengo! Yes! Flamengo! The greatest one!
Retirado do livro "O gol é necessário" da Editora Civilização Brasileira

3 comentários:

  1. Ah, cara... Lindo... Tão diferente de hj em dia qdo um jogadorzinho qualquer de uma país fracassado desses fala q um time q tem 4 títulos brasileiros (vasco), não é grande... Sou Flamenguista, mas me dói ler algo desse tipo!

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  2. Realmente escutar um jogador como o colombiano Macnelly Torres, que apesar de ter intimidade com a pelota é um jogador apenas razoável, dizer que o Vasco "não é uma das maiores equipes" brasileiras, é revoltante. E o pior é ele falar uma barbaridade destas sem ter um pingo de conhecimento da história do Gigante da Colina.

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  3. muito bem bolado!!! gostei muito continue com esse seu talento

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