terça-feira, 15 de novembro de 2011

GÊNIOS DAS PALAVRAS - FERNANDO CALAZANS

Na despedida de Zico, o fim de uma era
O Jogo do Adeus

Que festa é essa em que todos se perfilam para celebrar o fim de um dos mais felizes casos de amor e identificação que o futebol brasileiro já produziu? Que festa estranha, essa festa irreal, em que o rosto da multidão se ilumina com um sorriso falso – máscara sob a qual todos choram, no íntimo, a partida do ídolo.

Triste homenagem que vai colocar o ponto final numa paixão de mais de 20 anos que, ao contrário de todas as paixões, terminará mais acesa e ardente do que quando começou. Daqui a poucos dias, em noite solene e nostálgica no Maracanã, Zico estará se despedindo para sempre da torcida do Flamengo.

Poucas vezes um jogador de futebol terá se identificado tanto com a camisa que vestiu em campo e com a bandeira que a torcida levantou por ele nas arquibancadas.

Perde o Flamengo seu maior ídolo; perde o Brasil um de seus craques imortais. Zico foi, com certeza, o jogador mais brilhante que surgiu no país depois da maravilhosa geração da Copa de 70. Durante 20 anos, reinou, soberano, no plano mais elevado da hierarquia do futebol brasileiro.

Graças a um futebol que atingiu o mais alto grau de sofisticação e requinte através da simplicidade que ele colocou em cada um de seus passes, de seus dribles, de seus gols. Foi certamente este o segredo que distinguiu Zico dos demias, como tem sido este, sempre, o segredo que distingue os grandes talentos do jogador comum: a naturalidade com que descobria soluções para as jogadas mais difíceis.

Impossível analisar, separadamente, em Zico, o goleador e o armador de jogadas. Pois ele foi as duas coisas ao mesmo tempo: a rapidez com que irrompia na área para decidir o lance (e, tantas vezes, o jogo) convivia em absoluta harmonia com a serenidade com que acalmava o meio de campo antes de executar o passe fatal. Uma jogada de Zico: o descortino com que a concebia e precisão com que a executava! Por isso, pode-se dizer que seu futebol era, simultaneamente, um futebol de reflexos e de reflexão.

As contusões acrescentaram à carreira de Zico um tom dramático que contribuiu certamente para humanizar o mito, aproximando-o ainda mais do homem comum das arquibancadas, que sofreu com ele e por ele. Seu denodo e seu desprendimento para ajudar o Flamengo a conquistar os títulos mais importante, não raro às custas do próprio sacrifício – tudo isso, aliado ao futebol de primeira que sempre jogou, colaborou na construção da imagem irretocável do ídolo. Zico foi e é exemplar, como jogador e como profissional.

Seu amor ao futebol fez dele um obstinado na luta sem tréguas contra uma contusão no joelho que praticamente o afastou de uma Copa do Mundo (México, 1986) e o condenou a frequentes períodos de inatividade e tratamento penoso. Mas, hoje, sabe-se com certeza que era nesses dias de sofrimento e solidão que ele armazenava forças para voltar a exibir seu jogo cada vez mais altruísta e cerebral.

Agora tudo isso acabou. O acontecimento da próxima terça-feira no Maracanã, que nós chamamos de festa, nada mais é do que o sepultamento de uma era do futebol brasileiro, em geral, e do Flamengo, de modo muito particular. É o fim da era Zico. Mas seus passes, seus dribles, seus gols hão de ficar para sempre na nossa lembrança como uma luminosa manifestação da mais pura arte brasileira.

Jornal O Globo
02/02/1990
Retirado do livro “O Nosso Futebol”, da editora MAUAD

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