Pensa-se
em introduzir o futebol, nesta terra. É uma lembrança que, certamente, será bem
recebida pelo público, que, de ordinário, adora as novidades. Vai ser, por
algum tempo, a mania, a maluqueira, a idéia fixa de muita gente. Com exceção
talvez de um ou outro tísico, completamente impossibilitado de aplicar o mais
insignificante pontapé a uma bola de borracha, vai haver por aí uma excitação,
um furor dos demônios, um entusiasmo de fogo de palha capaz de durar bem um
mês.
Pois
quê! A cultura física é coisa que está entre nós inteiramente descurada. Temos
esportes, alguns propriamente nossos, batizados patrioticamente com bons nomes
em língua de preto, de cunho regional, mas por desgraça estão abandonados pela
débil mocidade de hoje. Além da inócua brincadeira de jogar sapatadas e de
alguns cascudos e safanões sem valor que, de boa vontade, permutamos uns com os
outros, quando somos crianças, não temos nenhum exercício. Somos, em geral,
franzinos, mirrados, fraquinhos, de uma pobreza de músculos lastimável.
A parte
de nosso organismo que mais se desenvolve é a orelha, graças aos puxões
maternos, mas não está provado que isto seja um desenvolvimento de utilidade.
Para que serve ser a gente orelhuda? O burro também possui consideráveis
apêndices auriculares, o que não impede que o considerem, injustamente, o mais
estúpido dos bichos. (...) Fisicamente falando, somos uma verdadeira miséria.
Moles, bambos, murchos, tristes - uma lástima! Pálpebras caídas, beiços caídos,
braços caídos, um caimento generalizado que faz de nós um ser desengonçado,
bisonho, indolente, com ar de quem repete, desenxabido e encolhido, a frase
pulha que se tornou popular: "Me deixa..." Precisamos fortalecer a
carne, que a inação tornou flácida, os nervos, que excitantes estragaram, os
ossos que o mercúrio escangalhou.
Consolidar
o cérebro é bom, embora isto seja um órgão a que, de ordinário, não temos
necessidade de recorrer. Consolidar o muque é ótimo. Convencer um adversário
com argumentos de substância não é mau. Poder convencê-lo com um grosso punho
cerrado diante do nariz, cabeludo e ameaçador, é magnífico. (...)
Para
chegar ao soberbo resultado de transformar a banha em fibra, aí vem o futebol.
Mas por
que o futebol?
Não
seria, porventura, melhor exercitar-se a mocidade em jogos nacionais, sem
mescla de estrangeirismo, o murro, o cacete, a faca de ponta, por exemplo? Não
é que me repugne a introdução de coisas exóticas entre nós. Mas gosto de
indagar se elas serão assimiláveis ou não.
No caso
afirmativo, seja muito bem vinda a instituição alheia, fecundemo-la, arranjemos
nela um filho híbrido que possa viver cá em casa. De outro modo, resignemo-nos
às broncas tradições dos sertanejos e dos matutos. Ora, parece-nos que o
futebol não se adapta a estas boas paragens do cangaço. É roupa de empréstimo,
que não nos serve.
Para que
um costume intruso possa estabelecer-se definitivamente em um país é
necessário, não só que se harmonize com a índole do povo que o vai receber, mas
que o lugar a ocupar não esteja tomado por outro mais antigo, de cunho
indígena. É preciso, pois, que vá preencher uma lacuna, como diz o chavão.
O do
futebol não preenche coisa nenhuma, pois já temos a muito conhecida bola de
palha de milho, que nossos amadores mambembes jogam com uma perícia que
deixaria o mais experimentado sportman britânico de queixo caído. (...)
Temos
esportes em quantidade. Para que metermos o bedelho em coisas estrangeiras? O
futebol não pega, tenham a certeza. Não vale o argumento de que ele tem ganho
terreno nas capitais de importância. Não confundamos.
As
grandes cidades estão no litoral; isto aqui é diferente, é sertão. As cidades
regurgitam de gente de outras raças ou que pretende ser de outras raças; não
somos mais ou menos botocudos, com laivos de sangue cabinda ou galego.
Nas
cidades os viciados elegantes absorvem o ópio, a cocaína, a morfina; por aqui
há pessoas que ainda fumam liamba. (...)
Estrangeirices
não entram facilmente na terra do espinho. O futebol, o boxe, o turfe, nada
pega.
Desenvolvam
os músculos, rapazes, ganhem força, desempenem a coluna vertebral. Mas não é
necessário ir longe, em procura de esquisitices que têm nomes que vocês nem
sabem pronunciar.
Reabilitem
os esportes regionais que aí estão abandonados: o porrete, o cachação, a queda
de braço, a corrida a pé, tão útil a um cidadão que se dedica ao arriscado
ofício de furtar galinhas, a pega de bois, o salto, a cavalhada e, melhor que
tudo, o cambapé, a rasteira.
A
rasteira! Este, sim, é o esporte nacional por excelência!
Todos
nós vivemos mais ou menos a atirar rasteira uns nos outros. Logo na aula
primária habituamo-nos a apelar para as pernas quando nos falta a confiança no
cérebro - e a rasteira nos salva.
Na vida
prática, é claro que aumenta a natural tendência que possuímos para nos
utilizarmos eficientemente da canela. No comércio, na indústria, nas letras e
nas artes, no jornalismo, no teatro, nas cavações, a rasteira triunfa.
Cultivem
a rasteira, amigos!
E se
algum de vocês tiver vocação para a política, então sim, é a certeza plena de
vencer com auxílio dela. É aí que ela culmina. Não há político que a não
pratique. Desde S. Exa. o senhor presidente da República até o mais pançudo e
beócio coronel da roça, desses que usam sapatos de trança, bochechas moles e
espadagão da Guarda Nacional, todos os salvadores da pátria têm a habilidade de
arrastar o pé no momento oportuno.
Muito
útil, sim senhor.
Dediquem-se
à rasteira, rapazes.
Graciliano
Ramos
Crônica
publicada em "o Índio", em Palmeira dos Índios (AL), em 1921
Nossa!
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