Flamengo Sessentão
Corria o ano de 1911. Vejam vocês: 1911! O bigode do kaiser
estava, então, em plena vigência: Mata Hari, com um seio só, ateava paixões e
suicídios; e as mulheres, aqui e alhures, usavam umas ancas imensas e
intransportáveis. Aliás, diga-se de passagem: é impossível não ter uma funda
nostalgia dos quadris anteriores à Primeira Grande Guerra. Uma menina de
catorze anos para atravessar uma porta tinha que se pôr de perfil. Convenhamos:
- grande época! grande época!
Pois bem. Foi em 1911, tempo dos cabelos compridos e dos
espartilhos, das valsas em primeira audição e do busto unilateral de Mata Hari,
que nasceu o Flamengo. Em tempo retifico: - nasceu a seção terrestre do
Flamengo. De fato, o clube de regatas já existia, já começava a tecer a sua
camoniana tradição náutica. Em 1911, aconteceu uma briga no Fluminense. Discute
daqui, dali, e é possível que tenha havido tapa, nome feio, o diabo. Conclusão:
- cindiu-se o Fluminense e a dissidência, ainda esbravejante, ainda ululante,
foi fundar, no Flamengo de regatas, o Flamengo de futebol.
Naquele tempo tudo era diferente. Por exemplo: - a torcida
tinha uma ênfase, uma grandiloquência de ópera. E acontecia esta coisa sublime:
- quando havia um gol, as mulheres rolavam em ataques. Eis o que empobrece
liricamente o futebol atual: - a inexistência do histerismo feminino. Difícil,
muito difícil, achar-se uma torcedora histérica. Por sua vez, os homens torciam
como espanhóis de anedota. E os jogadores? Ah, os jogadores! A bola tinha uma
importância relativa ou nula. Quantas vezes o craque esquecia a pelota e saía
em frente, ceifando, dizimando, assassinando canelas, rins, tóraces e baços
adversários? Hoje, o homem está muito desvirilizado e já não aceita a
ferocidade dos velhos tempos. Mas raciocinemos: - em 1911, ninguém bebia um
copo d’água sem paixão.
Passou-se. E o Flamengo joga, hoje, com a mesma alma de 1911.
Admite, é claro, as convenções disciplinares que o futebol moderno exige. Mas o
comportamento interior, a gana, a garra, o élan são perfeitamente inatuais. Essa
fixação no tempo explica a tremenda força rubro-negra. Note-se: - não se trata
de um fenômeno apenas do jogador. Mas do torcedor também. Aliás, time e torcida
completam-se numa integração definitiva. O adepto de qualquer outro clube
recebe um gol, uma derrota, com uma tristeza maior ou menor, que não afeta as
raízes do ser. O torcedor rubro-negro, não. Se entra um gol adversário, ele se
crispa, ele arqueja, ele vidra os olhos, ele agoniza, ele sangra como um César
apunhalado. Também é de 1911, da mentalidade anterior à Primeira Grande Guerra,
o amor às cores do clube. Para qualquer um, a camisa vale tanto quanto uma
gravata. Não para o Flamengo. Para o Flamengo, a camisa é tudo. Já tem
acontecido várias vezes o seguinte: - quando o time não dá nada, a camisa é
içada, desfraldada, por invisíveis mãos. Adversários, juízes, bandeirinhas
tremem então, intimidados, acovardados, batidos. Há de chegar talvez o dia em
que o Flamengo não precisará de jogadores, nem de técnicos, nem de nada.
Bastará a camisa, aberta no arco. E diante do furor impotente do adversário, a
camisa rubro-negra será uma bastilha inexpugnável.
Nelson Rodrigues / Manchete Esportiva – 26/11/1955
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