Não é todo dia que se completam cem anos, mas confesso que
ainda estou na dúvida se a hora é boa para comemorar. Sei que tenho muitas
coisas maravilhosas para relembrar, mas faz menos de duas semanas que eu passei
pela maior vergonha de minha história, numa baita festa que dei aqui em casa,
com convidados de todos os cantos do planeta. Estou abalada e triste. Na vida, às
vezes a gente acaba na mão de pessoas egoístas e aproveitadoras, e é assim que
me sinto neste momento, cheia de sanguessugas presas no meu corpo. Quer saber,
é melhor mesmo buscar o passado na memória.
Parece que foi ontem que nasci, no bairro de Laranjeiras, no
Rio de Janeiro. Dizem que foi uma festona muito animada e que o pessoal foi
embora com gostinho de quero mais. Minha primeira grande lembrança vem de
quando eu tinha quase cinco anos, em 1919. Que loucura aquele encontro nas
Laranjeiras com meus amiguinhos sul-americanos. Foi ali que eu comecei a
descobrir o meu enorme dom para fazer as pessoas sorrirem. Quando eu era
criança, na década de 20, alguma coisa dentro de mim me dizia um dia eu seria
mundialmente conhecida.
Nos anos 30 e 40 eu já viajava pra tudo quanto era lado.
Nunca vou me esquecer dos dias que passei na França, em 1938. Pela primeira vez
me senti livre para voar. E voei longe! E acho que iria ainda mais longe se não
fosse a Segunda Guerra Mundial, mas fazer o quê? Aí chegou o tal do ano de 1950.
Diferente do que muitos pensam, não tenho problemas em falar dele. Não vou
negar que às vezes me pego pensando naquele silêncio todo e choro. É difícil sentir
na própria pele uma descida tão rápida do céu ao inferno, mas são cicatrizes
assim que formam uma pessoa melhor. E, afinal, não dizem que a vida começa
mesmo depois dos 40?
Que bom que decidi relembrar o passado. Não sei se fico mais
arrepiada com o espetáculo que eu dei em 1958, 1962 ou 1970. Um em cada canto de
um mundo que não se cansava de me aplaudir. Até consagrada como símbolo de arte
eu fui! A felicidade que eu proporcionava para o meu país era tão grande que
até os políticos tentaram tirar uma casquinha do meu sucesso. Sem dúvidas eu vivi
mágicos momentos na década de 80, mas nada que se compare à minha Era de Ouro,
quando me sentia uma majestade, me sentia a alegria do povo.
De 1990 pra cá eu venho me sentindo menos artística. Tenho lembranças
maravilhosas dos meus shows nos Estados Unidos, em 1994, e no Japão e na Coreia
do Sul, em 2002, mas as pessoas não tiram da memória os meus anos dourados e às
vezes pegam exageradamente no meu pé. Mas eu entendo as críticas. Sei que boa
parte da cobrança vem de quem conhece o meu potencial e só quer o melhor para
mim. O problema são estas sanguessugas presas no meu corpo, que só querem saber
de me usar.
Se eu pudesse fazer um desejo... Opa, eu posso! Hoje é o meu
aniversário de 100 anos! Agora me empolguei! Vou sair para comprar um bolo e
cem velinhas. Na hora de cantar parabéns, vou apagar cada uma delas bem devagarzinho
e desejando com todas as minhas forças que estas sanguessugas saiam para sempre
do meu corpo.
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