quinta-feira, 14 de outubro de 2010

Gênios das Palavras - Nelson Rodrigues

O CRAQUE SEM IDADE

Quando acabou a etapa inicial do jogo Brasil x Paraguai, o placar acusava um lírico, um platônico 0 x 0. Ora, o empate é o pior resultado do mundo. O torcedor sente-se roubado no dinheiro da entrada e inclinado a chamar os 22 jogadores, o juiz e os bandeirinhas de vigaristas. Acresce o seguinte: - de todos os empates o mais exasperante é o de 0 x 0. Essa virgindade desagradável e irredutível do escore já humilhava o público e, ao mesmo tempo, o enfurecia.

Súbito, o auto-falante do estádio se põe a anunciar as duas substituições brasileiras: - entravam Zizinho e Walter. Foi uma transfiguração. Ninguém ligou para Walter, que é um craque, sim, mas sem a tradição, sem a legenda, sem a pompa de um Ziza. O nome crepitou, que encheu, que inundou todo o espaço acústico do Maracanã foi o do comandante banguense. Imediatamente, cada torcedor tratou de enxugar, no lábio, a baba da impotência, do despeito e da frustração. O placar permanecia empacado no 0 x 0. Mas já nos sentíamos atravessados pela certeza profética da vitória. Os nossos tórax arriados encheram-se de um ar heróico, estufaram-se como os anúnicios de fortificante.

Eis a verdade: - a partir do momento em que se anunciou Zizinho, a partida estava automática e fatalmente ganha. Portanto, público, juiz, banderinhas e os dois times podiam ter se retirado, podiam ter ido para a casa. Pois bem: - veio o jogo. Ora, o primeiro tempo caracterizara-se por uma esterilidade bonitinha. Nenhum gol, nada. Mas a presença de Zizinho, por si só, dinamizou a etapa complementar, deu-lhe caráter, deu-lhe alma, infundiu-lhe dramatismo. Por outro lado, verificamos ainda uma vez o seguinte: - a bola tem um instinto clarividente e infalível que a faz encontrar e acompanhar o verdadeiro craque. Foi o que aconteceu: - a pelota não largou Zizinho, a pelota o farejava e seguia como uma fidelidade de cadelinha ao seu dono. (Sim, amigos: - há na bola uma alma de cachorra.)

No fim de certo tempo, tínhamos a ilusão de que só Zizinho jogava. Deixara de ser um espetáculo de 22 homens, mais o juiz e os bandeirinhas. Zizinho triturava os outros ou, ainda, Zizinho afundava os outros numa sombra irremediável. Eis o fato: - a partida foi um show pessoal e intransferível.

E, no entanto, a convocação do formidável jogador suscitara escrúpulos e debates acadêmicos. Tinha contra si a idade, não sei se 32, 34, 35 anos. Geralmente, o jogador de 34 anos está gagá para o futebol, está babando de velhice esportiva. Mas o caso de Zizinho mostra o seguinte: - o tempo é uma convenção que não existe nem para o craque, nem para mulher bonita. Existe para o perna-de-pau e para o bucho. Na intimidade da alcova, ninguém se lembraria de pedir à rainha de Sabá, a Cleópatra, uma certidão de nascimento. Do mesmo modo, que importa a nós tenha Zizinho dezessete ou trezentos anos, se ele decide as partidas? Se a bola o reconhece e prefere?

No jogo Brasil x Paraguai, ele ganhou a partida antes de aparecer, antes de molhar a camisa, pelo alto-falante, no intervalo. Em último caso, poderá jogar, de casa, pelo telefone.

Brasil 3 x 0 Paraguai, 13/11/1955, no Maracanã, Zizinho fez dois gols e deu o passe para Escurinho marcar o seu.

Manchete Esportiva
03/12/1955
retirado do livro "À Sombra das Chuteiras Imortais" da Editora Companhia das Letras

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